FORA DA LEI (excertos)




BEM-VINDO À MÁQUINA


Bem-vindo sejas
à terra dos relógios
e da troca
não te preocupes
com o que tens
a fazer aqui
nós tratamos de tudo
e se te portares bem
receberás umas migalhas
bem-vindo sejas, pois,
à máquina
na infância poderás brincar
mas depois a escola
tomará conta de ti
encaminhar-te-á
para o mercado
trabalharás
com o suor do teu rosto
assentarás
casarás
terás filhos
poderás sonhar às vezes
verás televisão
até que chegas a velho
sem desejo
sem volúpia
eis a tua vida
bem-vindo sejas
à terra dos relógios
e da troca.





QUE DEUS É ESTE?


Que deus é este
Que me ilumina
Que deus é este
Que liberta a mente
Ea mão que escreve?

Todo eu sou luz
Amor
Poesia

Sigo o ritmo
As cores
As rosas
Todo eu sou mistério
Bailarino
primeiro dia

Que deus é este
Que me guia?





NO QUINTAL


Sabes, é nestes dias em que
parece que não conseguimos
parar de escrever
que somos mais autênticos
até parece que estamos a dizer “a verdade”
de tal forma nos sentimos em comunhão
com os animais cá de casa
sobre os quais raramente escrevo
o que é estranho
tenho um quintal cheio de cães, gatos e pássaros
e quase nunca escrevo sobre eles

Os animais não precisam de dinheiro
para sobreviver
precisam de comer e de beber
e bastam-se a eles próprios
para quê complicar a coisa com notas e moedas
e sacrifício e trabalho
se podemos ser livres como os animais?

Sabes, estou a escrever no quintal
e vou escrever até ser noite
em comunhão com os animais
hoje nem sequer vou olhar para o telejornal
não quero saber da campanha eleitoral
talvez fizesse melhor se me abstivesse
sempre engrossaria a abstenção
no fundo, também estou a fazer campanha
a minha campanha
a campanha que vai aos tascos e aos bares
que não passa nos telejornais

estava eu a falar dos animais
e onde já vou
estou a produzir
não produzo computadores nem automóveis
mas produzo versos
já estou como o Álvaro de Campos na “Tabacaria”
porque raio é que os versos
hão de valer menos do que os computadores
e os automóveis?
Produzo
e para tal só preciso de papel e caneta
de resto, estou muito bem aqui
no quintal com os animais, as flores e as árvores
não preciso de bancos nem de multinacionais
é claro que tenho de prestar homenagem
aos produtores de papel e de canetas
àqueles que produziram os meus instrumentos
de trabalho
de trabalho, sim,
de trabalho livre, não alienado
criador

e tocam os sinos da igreja
até os sinos da igreja estão em sintonia comigo
os sinos da igreja abençoam o meu trabalho
os sinos da igreja abençoam o papel e a caneta
há muito tempo que não me sentia assim
em harmonia com a natureza

pouso a caneta
as coisas rolam como nunca
até voltei a escrever em casa.





MANIFESTO ANTINORMALIDADE


Eu, António Pedro Ribeiro, 40 anos,
declaro que não sou um número
que não sou uma percentagem
que não sou uma folha do IRS
que não vou com a Maria
que vai com as outras
que rejeito o pensamento único
o homem calculável e coletável
a ideologia dominante
que amo as alturas, os cumes
onde se respira a liberdade
que rejeito o rebanho
a vida normal das pessoas normais
que sigo a via que conduz a mim mesmo
que não quero governar
nem ser governado
que não sou um detergente
nem uma folha de papel higiénico
que não estou na bolsa
nem à venda no mercado
que sou um livre-pensador
um indivíduo soberano
que não sou espectador
da sociedade-espetáculo
nem mercadoria
que quero as ruas cheias de poesia
que me entedio no dia a dia
no quotidiano da rotina
mas que ainda sou capaz de dançar
de cantar
e de me rir
nas vossas caras.





DO GOVERNO E DO TRABALHO


O Governo dá palmadas aos cidadãos mal comportados
O Governo trata os cidadãos como crianças
mal comportadas
O Governo é prejudicial à saúde
O Governo é sério
O Governo nunca se ri
O Governo nunca faz disparates
O Governo é um polícia
O Governo nunca dorme
O Governo está sempre vigilante
O Governo não bebe copos
O Governo está sempre a trabalhar
O Governo não mija
O Governo não caga
O Governo não fode
O Governo é uma seca
O Governo é quadrado
O Governo saca impostos
O Governo é rigoroso
O Governo é disciplinado
O Governo é um general

O dono do café está contra o Governo
O dono do café quer organizar uma manifestação
contra o Governo
O dono do café está contra a televisão
mas mantém-na ligada.

Mas a conversa do trabalho estraga sempre tudo!

O dono do café quer pôr todos a trabalhar
O dono do café e o Governo querem deixar o poeta
e todos os malandros que não querem trabalhar
a dormir na rua

Vamos todos trabalhar!
Trabalhar 24 horas por dia!
Trabalhar até à morte!
Trabalhar para o Governo!

E o poeta que fique na rua a morrer de frio.





VENCER NA VIDA


“A educação continua a ser o fator mais decisivo para determinar se uma criança vai vencer na vida ou não.”
                                                                                                                                                                                           Barack Obama


Vencer na vida. Eis a ideologia de Obama e da máquina dominante. Vencer para que outros percam. Eis o simplismo da linguagem futebolística que o zé da esquina também adota. Estamos numa competição, num campeonato, numa guerra. É preciso vencer, subir na vida, derrotar o inimigo, o nosso semelhante, o ser humano. Vencer sem olhar a meios debaixo da paz podre que os programas televisivos da tarde nos espetam todos os dias. Sim, bom-dia, boa-tarde, somos todos irmãos, todos porreiros uns para os outros, mas é preciso vencer, tratar da vidinha. Ninguém dá nada a ninguém, não é? O que importa é subir, ir atrás do cacau, juntar uma boa maquia, passar por cima do parceiro se preciso for. Eis a que se resume a vida, com mais ou menos retórica, com mais ou menos “profecias”, do Obama ao zé da esquina. Vencer na vida, derrotar o outro, o inimigo, eis o que se aprende na escola, no local de trabalho. Eis o resultado de séculos de civilização, eis o grande triunfo da tecnologia. Vencer na vida. Chular o camarada do lado, sob a roupagem de uma suposta liberdade, de uma suposta democracia. Vencer na vida e viver com o pânico da crise, do patrão, do papão, do “Big Brother”, do vizinho do lado. Que bela vida, que sossego, que felicidade plástica. Para quê nascer?





OS POETAS


Descemos à cave
para celebrar o poema
trazemos o fogo
que roubámos aos deuses


Somos da raça dos malditos
dos renegados de todas as eras
connosco as damas não estão seguras
connosco o sangue ferve de raiva


Os negócios dos homens nada nos dizem
entre faunos e sátiros
erigimos a nossa morada
o homem vulgar não nos atinge


Os nossos festins não conhecem limites
estamos irmanados com a loucura


O nosso grito é inumano
Vem do centro da Terra
O riso é satânico dionisíaco


Não usamos relógios
a nossa hora é o Grande Meio-Dia
as regras dos homens nada nos dizem
só as seguimos, quando as seguimos,
por conveniência


Entramos no espírito dos homens
convertemos as mulheres em bacantes
semeamos o caos e a anarquia


O sossego e o tédio amolecem-nos
tornam-nos tímidos
mas o vinho robustece-nos
torna-nos xamãs
irmãos dos deuses
Poetas.