O Poeta
por Nuno Meireles
18 Julho 2013
ao A. Pedro Ribeiro
Não é fácil admitires o que admites
não é fácil tomares posição
não é fácil falares como falas
sei-o porque
com um atraso de alguns anos
começo a fazer o mesmo
não contava com o
opróbrio
não contava até com o abandono
não é fácil
porque este mundo não é fácil
nem é feito para aqueles como tu
sabes conheço gente que colecciona
respeitabilidade
como tu cultivas a escrita
conheço gente que dobra a cerviz e diz que sim
e sorri
como tu deambulas e desfazes
conheço gente que está no topo, cujas capas
são bonitas,
que procura a aceitação
que haveria de soltar gritinhos (de horror)
caso
acontecesse escrever a palavra mijar
como tu fizeste no teu livro
conheço gente cuja voz é melíflua
que faz festinhas ao ego
como tu fazes uma festa por existires
conheço gente que se vê ao espelho cada vez
que escreve
e se admira
e se desfaz em lisonja
perante si mesmos
como tu te multiplicas em manifestos de como o
poeta é um membro da elite, sendo poeta
e não bajulador
e não menino bonito
e não part-timer
e não um colaboracionista
sabes eu acredito na dialéctica e tudo isso
acredito em ser-se uma coisa e o seu contrário
mas gosto mais do que tu és mais
e gosto menos do que eles são mais
gosto mais de tu seres egoísta com a tua
poesia
e gosto menos de eles serem bajuladores e
bem-comportados e meninos do coro
sou um dialéctico tendencioso
e prefiro um dos lados ao outro lado
e estou farto dos burguezinhos
e estou farto dos capitalistazinhos da
admiração e da aprovação dos outros
e estou farto do sêbo, e da sempre eterna
colaboração
estou farto das toupeirinhas literárias
estou farto dessas ténias simpáticas que até
nem se importam de viver na merda, de engolir merda e sair com a merda
caso tenham mais um calorzinho de apoio, mais
um abracinho de apoio, mais uma pancadinha no ombro
que lhes diga – escreves bem, minha ténia
prefiro-te a ti, aos como tu
prefiro o teu lado da dialéctica
prefiro a tua voz
e sei que – dialécticamente – apreciarás
mas não precisarás
do meu louvor
pois
ao contrário das ténias
não és um parasita
és um escritor
és um poeta
um poeta.
Texto lido por Nuno Meireles na duocentésima edição do programa "Poesia Em Voz Alta", publicado no YouTube, no dia 18 de Julho de 2013 e publicado pela primeira vez na versão escrita em www.apedroribeiro.blogspot.pt, no dia 20 de Julho de 2013.
António Pedro Ribeiro: Individualismo revolucionário, xamanismo e u-topia
por Alexandre Teixeira Mendes
3 Janeiro 2013
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De entre os últimos livros de António Pedro Ribeiro, merece ser especialmente citado “Fora da Lei” (e-ditora, Braga, Dezembro de 2012), um poemário miscelânea-iconoclasta que inclui um CD com gravações (recitações) do autor e diseur (ao longo do ano corrente). Todos estaremos de acordo em que estas páginas se inscrevem no quadro de uma escrita testemunho assente em esquemas e fórmulas composicionais pré-estabelecidas - jogos enunciativos - temáticas de teor auto-biográfico (no seu contexto preciso: o domínio dos “fantasmas” pessoais). “Combato os demónios/como Horderlin, Kleist, Nietzsche/vou até ao infinito” (p.30). Desta escrita, segundo o quadro poético-base dos fluxos mentais e da errância - habitual e constante - de ser e ser algo – singular e próprio - das combinações múltiplas – fica-nos a vizinhança imediata com o “caminho excêntrico” de que nos fala Hörderlin. Tem assim o condão de nos remeter à u-topia e ao niilismo (democrático).
hors la loi
Esta poética surge-nos, antes de mais nada, associada à recusa do poder e do controlo tecnopolita (para usar a expressão de Harvey Cox). Mostra-se-nos guiado pela crítica das estruturas centralizadas de dominação e, no entanto, do capitalismo manipulativo (onde será necessário acrescentar: a lógica do (ter sobre o ser) mercantil). Diremos que estes textos-poemas coincidem também com um tom semi-insurrecional - no re-assumir da praxis política - da dialéctica do fora-da-lei, hors la loi - do “discurso livre”. E em que se reclama o compromisso militante (minoritário) e o próprio ideário da liberdade: a "liberdade livre" de Rimbaud. A escrita de António Pedro Ribeiro - já o dissemos antes - sempre se mostrou possuída por uma paixão central da “urbs” - a prática viva e “mítica” da cidade-panorama - transumante ou metafórica - da “polis” - dos “voyeurs” ou caminhantes metropolitanos - “on the road” - bem à maneira da beat generation - do “dire-vrai” sobre eros - as questões atinentes a todo o poder-dominação que se volve demoníaco (a “Kultur” consumista ou o “American Way of Life”).
iluminações
Na acentuação crítica do mundo quotidiano (everyday-world) e do mundo da vida (life-world) - sob um fundo filosófico partilhado que nos remete à Internationale situationiste francesa e seus sonhos de revolução e libertação no domínio da vida quotidiana - as teses criticistas de Henri Lefebvre - esta poemática encerra em si, necessariamente, uma vocação dialógica e comunal. O point de départ da poesia de António Pedro Ribeiro é, em sentido rigoroso e original, a discussão sobre “representação” e “autoridade”: a sociedade do espectáculo. A originalidade desta escrita-vórtice está no contínuo movimento de imersão/ re-emersão da palavra - dando prevalência à vox (vocis) - às “iluminações”. Poderemos pôr em evidência um tipo de poesia engagé - pós-radical - de inscrição ideológica “para-marxista”. Na crítica dos módulos e fórmulas da sociedade de mercado e de dominação - num contexto de “acelerada” “liquefacção” das estruturas e instituições sociais em que hoje naufragamos - esta poética prima, antes de mais, pela singularidade e intransigência do seu radicalismo (a lição báquica): “mas há noites em que Dionísios/volta e aí dança, celebra e faz/tremer o instituído” (p.31)
niilismo
Os poemas de António Pedro Ribeiro exibem, em seu contexto de significação original, um questionar social e político: advogam um niilismo extremo, o l'enjeu do individualismo revolucionário (na acepção de Alain Jouffroy). Sob a égide da crítica básica do sistema industrial-consumista - denunciam-se as patologias e as fraquezas da razão instrumental - os truques e mentiras (a linguagem corrente) dos contabilistas e dos economistas - do poder soberano e das suas instituições - a situação humana, the human predicament (na conceituação do teólogo Paul Tillitch). Mais ainda, os oligopólios - o mundo financeiro - o escravismo e a opressão mercantil - a estrutura e a lógica da “sociedade unidimensional” (v. Manifesto Antinormalidade, p. 26-27). Unindo-se ao niilismo de Max Stirner e Guy Debord - as razões de uma revolta anárquico-libertária - Rimbaud, Morrison, Ginsberg e Miller - o próprio riso de Zaratustra – a obra de António Pedro Ribeiro assenta, de per si, na assumpção cénica (assertiva) do desejo ( a "indizibilidade do único"). Não teremos dificuldade em entender, desde já, porque os gregos falavam de um logos spermatikos, a palavra geradora ou o pensamento seminal.
trans(e)versal
A poesia de António Pedro Ribeiro assenta, por conseguinte, - já o vimos precedentemente - na crítica da alienação (manipulação autoritária) e da dominação (instrumental, organizacional e psíquica) - cujo protótipo simbólico é o “Zé-Ninguém” de W. Reich. Referimo-nos a uma escrita que veicula latu sensu a insânia, o pathos da loucura e a ebriedade. Não se deve perder de vista a plenitude e a beatitude de uma poética sugerindo um caminho (de discernimento) alternativo (primordial e iluminativo): "asceta longe da tribo xamã encoberto" (p.21). Trata-se - à primeira vista - de uma escritura “engajada” - de apego ao trans(e)versal - que se opõe à visão normal - convencional. Poderíamos falar longamente sobre a conscienciosa rebelião desta poesia (porquanto uma escrita da contestação, do dissentimento ou da recusa). Temos assim uma poética mundivivencial da dicção coloquial quotidiana (para além da mera tradição lírica-discursiva).
activismo existencial
A poesia negativa e dialéctica-dialógica - catártica e des-construtora - assume a dissidência - o poder da contestação e do protesto que é essencial a todo o pensamento livre e criador. Esta escrita denunciadora do “vazio” do mundo - da ideologia e da linguagem tecnocrática do capitalismo planetário (que transforma a pessoa humana em um ser domesticado e unidimensional) esforça-se por ser - sob as estratificações das convenções fixas - uma poesia dos transes e transportes visionários. E é ainda bem preciso e essencial notar o seu pendor oracular e na coincidência com as correntes beat. Uma das dimensões destes textos é o forte pendor ideológico - enquanto propensão crítica do ethos do domínio capitalista e inclusive da res publica burguesa. Já que se admite que o poder político é basicamente sustentado pela coerção física, enquanto que o poder económico se sustenta através de recompensa e privação.
hybris
Trata-se de uma poesia da iconoclastia e da irreverência (composta de palavras-chave no sentido estrito) que enaltece, vimo-lo nos capítulos precedentes, a auto-reflexão. Em que há também um exercício crítico em torno da sociedade autoritária “unidimensional”. Por fim, o questionamento dum mundo dominado por critérios de eficiência e sucesso e, por conseguinte, assente na “auto-escravização” do humano. Verificar-se-á que esta poesia - com os seus laivos de narcisismo umbiguista - está necessariamente ligada ao activismo existencial-visionário: de negação do ethos e do pathos do autoritarismo. Noutras palavras: uma escrita que patenteia, desde as primeiras obras, uma opção ético-política libertária. Falámos dos insigths de uma poética que nos surge mobilizada pelo “sagrado selvagem - o amor ao prolixo - a pro-jecção da hybris. “sou o canto das aves/e das sereias/sou aquele que renasce/e aquele que bebeu o Graal/que esteve com Jesus,/Merlin e Zaratustra//sou o super-homem/o poeta que reinará/sobre a Terra/sou Quixote/a lutar contra os moinhos/sou Artur de Camelot/sou todos os vencidos/que hão-de vencer/sou a água dos rios/sou o poema que não acaba/a canção que não se cala/o ouro todo do mundo” (pp.18-19)
profecia
Parece pois que as diligências da escrita de António Pedro Ribeiro, do poeta como do “performer”, são comandadas, cada vez mais, pela “projecções” do inconsciente. Isto traz-nos à mente os mecanismos de dissociação efectiva da identidade. A sua forca de gravitação está na apologia do “espírito livre”: libertação e liberdade colectiva. Tendo em conta essa outra virtude que é a poesia manifesto. Mais: a causa em que parece enfileirar é a causa da velha e da nova esquerda em estilo profético: democracia, auto-governo, organizações de base. É aqui que se faz importante a verificação da missão da denúncia e da profecia (já o indicamos anteriormente). Mas onde se enfatiza a liberdade e a “auto-determinação”: a de que somos “fazedores de mundo” (assinale-se a obra "Ways of Worldmaking" (1978) de Nelson Goodman) e a de que - note-se - estamos constantemente a fazer “novos mundos a partir dos velhos”. Como no-lo diz: “Capaz de gerar estrelas crio mundos novos” (p.43). Mas, pela sua própria natureza, uma poesia de "demanda" que - no seu teor cívico-ético - planfletarismo - simboliza a insurreição, a revolta, enfim, a crítica ao fascismo (democrático) em acto - que Agamben-Foucault denominou "bio-poder" - , quando se associa a visão paradigmática política do Ocidente ao campo de concentração.
(contra)poder
A poética da qual falamos é o exercício de um "contra-poder" (num aferrar-se à ideologia libertária e democratista). “Os instrumentos pelos quais o poder é exercido e as fontes do Direito para esse exercício - escreve Kenneth Galbraith – estão interrelacionadas de maneira complexa. Alguns usos do poder dependem de estar oculto, de não ser evidente a submissão dos que a ele capitulam” (Anatomia do Poder, Difel, Lisboa, p. 19). Observar-se-á, portanto, que o poder (no estrito exercício e manutenção) nunca pode, afinal, dissociar-se do seu apparatus. O que não podemos esquecer é que a história é normalmente escrita em torno do exercício do poder. Assim sendo poderia igualmente ser escrita em torno das fontes do poder e dos instrumentos que o impõem (Ib. p.105). Haveria apenas de perguntar se, basicamente, a finalidade do poder é hoje o exercício do próprio poder? E se tem ainda sentido admitir-se a poesia - passivamente como activamente - num mundo assente nas relações de poder - enquanto dom, hospitalidade, transe, desmesura?
leviathan
Na presente obra submetem-se a um exame crítico as categorias jurídicas tradicionais: re-equacionam-se os fundamentos do poder político e do direito (o novo leviathan). Não se trata evidentemente de propor a abolição dos códigos e das regras mas de considerar que o direito não é redutível a: 1) uma série de ordens ou imperativos, 2) um mero sistema de normas, 3) regularidade dos comportamentos, 4) função de uma realidade de tipo objectivo-natural. O que queremos sustentar é que a lei - as normas jurídicas - são fenómenos impessoais. Mas o que aqui é relevante é o dogma do liberalismo e do neo-liberalismo jurídicos - tacitamente uma ordem jurídica fechada e completa (primum verum). Parte-se aqui confessadamente de um desmascaramento da ideologia da “ordem” (da “normalização”) na acentuação de um confronto assumido que incide sobre a doutrinação uniformizante e a política moderna (como uma forma específica e difusa da guerra) super-dirigida. É razoável supor que a liberdade de realização dos fins individuais está pré-determinada pela história e pela sociedade. Na expressão de António Pedro Ribeiro: “Os negócio dos homens nada nos dizem/ entre faunos e sátiros/ erigimos a nossa morada/o homem vulgar não nos atinge” (p. 62)
(in)submissão
Não é necessário dizer que a linguagem mordaz e a linguagem mágica permanecem. Vem depois a valorização da natureza-experiência primordial e, em particular, da infância (imóvel). Distingue-se pela concepção rousseana - franciscana-silvestre do homem - que se revela da mesma natureza das pedras, animais ou plantas. “Celebro o triunfo da Arte sobre a sobrevivência. Sou o homem que vem dos séculos, da floresta. Trago em mim o enigma da existência. Sou rei, mago, poeta. Sou delírio e loucura. Sou o primeiro homem. Não conheço limites, sigo a liberdade antiga” (p. 22). Digamos - para encerrar, e de passagem - que esta poesia configura, nas suas linhas gerais, o cosmopolitismo, num tempo de mundialização do urbano, - das cidades-mundo - em que de facto se adensa particularmente a aceleração da história e, por outro lado, a decadência da paisagem (a destruição da natureza). E que supõe também o emergir do monstruoso (criado pelo homem) e a crescente artificialidade em todas as dimensões essenciais da existência. As estruturas políticas (incluindo o Estado) não existem fora da totalidade social de que são um elemento integrante. Revertendo agora ao nosso ponto, temos que a escrita de António António Pedro Ribeiro é mais o ponto de vista afirmativo da mensagem libertária - uma poética que recupera o ideal - o arquétipo do poeta-xamã. Ora - e para falar a linguagem de Platão - a poesia supõe a inspiração, ou seja, uma possessão do poeta por uma força divina, seja qual for, Musa ou Apolo, ou um “fora de si”, mais ou menos definido. Mas onde o testemunho “numinoso” é ainda transe.
Texto lido por Alexandre Teixeira Mendes no lançamento do livro “Fora da lei” de A. Pedro Ribeiro no café-bar "Olimpo", no Porto, no dia 21 de Dezembro de 2012 e publicado no blogue de Alexandre Teixeira Mendes no dia 3 de Janeiro de 2013.
António Pedro Ribeiro - Poeta da "Urbs" : Activismo, Pulsão e Ebriedade
por Alexandre Teixeira Mendes
23 Dezembro 2011
António Pedro Ribeiro (Porto, Maio de 1968) restaurou o antigo hábito dos “rapsodos” e dos “menesteres”, levando a poesia de lugar em lugar. Em suas andanças revelou-se o poeta da catarse que tem o mérito de trazer à superfície o traço do gozo perdido que só pode ser reencontrado no excesso, no gozo suplementar que se faz suporte da fantasia, receptáculo da causa do desejo. A sua escrita - performance - surge-nos imbuída de um pendor activista. Também aqui uma poesia - enquanto veículo terapêutico-existencial - (mega)político – que oscila entre o catártico e o des-construtor. Poderíamos mesmo falar de uma poética metropolitana: da “urbs”. Trata-se, pois, de uma obra “engajada” - das intro(pro)jecções - ancorada na existência livre de limites ou a paixão de uma liberdade impossível - que denuncia o “vazio” do mundo.
Dicção coloquial quotidiana
A dicção coloquial quotidiana é bastante óbvia no caso de António Pedro Ribeiro. Nos antípodas do bucolismo e da tradição lírica-discursiva - da escrita “sublime” ou transcendental - assiste-se em "Café Paraíso" (Editorial Bairro dos Livros, Culture Print, Porto, 2011) - o seu último livro - de forma directa, imediata - ao próprio eclodir de um corpo-próprio seminal (onde se exorciza a configuração amorosa e suas projecções fantasmáticas). Uma vez mais esta poemática tende ao transbordamento pulsional - na confirmação (ou refutação) emocional das possibilidades excessivas. Mas em que a denúncia da dominação do império conjunto - formado pelo poder técnico e a razão económica pura - é um ponto de partida metodológico.
Infinito da negação
Donde acaba o crítico e começa o panfletário, o extraviado ou simplesmente o instintual? O planfletarismo é em António Pedro Ribeiro inspiração: acesso ao optimismo revolucionário (frente à democracia “estabelecida”, “instalada” ou “mercantilista”). Pode dizer-se, contudo, que a sua poesia remete-nos ao “infinito da negação”. Assente num discurso do desejo (de Eros) que caracteriza a poesia de Allen Ginsberg ou de William Blake - torna-se demanda de “novatio” - um re-assumir do desencanto do mundo. Na primazia da revolta e da desobediência civil - do “différend” - evoca a “teoria crítica” (Reich-Marcuse) e, sobretudo, a “gaia ciência” de Nietzsche. Na sua poesia - desde o início - o protagonista são as três estruturas do “impossível”: política, amor e arte. “Riso soberano”: eis aqui a novidade de categoria muito significativa. É importante ressaltar ainda o privilégio da escrita automática - que nos autoriza a falar da pulsão pura - e enquanto veículo de uma “auto-biografia” ou trama “psico-biográfico”:
escrevemos sobre nós próprios
estamos sempre
a escrever sobre nós próprios
nada há a fazer
desenvolvemos este estilo
é claro que também
nos referimos aos outros
à televisão omnipresente
às riquezas
ao cacau
mas estamos sempre
a falar de nós próprios
num monólogo sem fim
é isto a vida
é isto a escrita
e é isto que sobra
de um dia de tédio (p. 77-78)
Id dionisíaco
Nesta obra perpassa – como dissemos antes - a vida escrita - os impasses do escrever. O que entendo aqui por exortação à libertação do "id" dioníaco. Não é difícil notar o seu apego à insânia - pathos da loucura - ou o privilégio do êxtasse e da ebriedade. Porque “Cerveja-matéria prima do poema” (p.34). Seria possível falar da afinidade entre o tipo de poética de António Pedro Ribeiro com a geração “beat”: a psicadelia e a contracultura. De facto, desde o início das suas “démarches”, António Pedro Ribeiro procurou ampliar e fortalecer o activismo político enfatizando a dimensão da ebriedade - contra a razão e a administração da vida – unindo-se a Rimbaud e Nietzsche. Mas é Raoul Vaneigem de “Arte de Viver para a Geração Nova” e o mercado pariense de ideias que oferece ao poeta um modelo: o da lição situacionista (de uma existência liberta do gregarismo e da massificação). Para António Pedro Ribeiro a ebriedade tem também a sua forma e a sua figura:
Bebo cervejas no inferno
Mas quero o paraíso
de volta (p.30)
Excesso e transgressão
Em “Café Paraíso” re-equaciona-se a experiência do sensível - a partir justamente dum apego visionário - que revela e permite ser - ou, se quisermos, dum corpo linguagem. Deste modo um corpo dionísiaco enquanto corpo pulsional - nos seus sintomas e somatizações – transferência e traço significante, excesso e transgressão. Nesta sua escrita concentra-se e exacerba-se, de maneira exemplar, uma poética catártica, em que, por sinal, a corporeidade, o estofo do ser, como diria Merleau Ponty, está prenhe de significado. Aqui o eterno existe no efémero, mas o contingente anseia e clama pelo absoluto:
procuro a eternidade
do instante
não me adaptei à vida burguesa
às conversas do senso comum
à vulgaridade do intelecto (p84)
Iconoclastia e irreverência
Trata-se de uma poesia que enaltece a auto-reflexão. Em que há também um estranho exercício crítico em torno da sociedade autoritária “unidimensional”. Por fim, o questionamento dum mundo dominado por critérios de eficiência e sucesso e, por conseguinte, assente na “auto-escravização” do humano. O conjunto dos poemas de António Pedro Ribeiro exibem, em seu contexto de significação original, um forte pendor ideológico - enquanto propensão crítica do capitalismo avançado e, por conseguinte, da desmontagem das falsas boas intenções burguesas. Ademais depreciativa e fustigadora do poder e dos seus símbolos - comissários e e aparelhos repressores ideológicos - vícios públicos, virtudes privadas. Insistimos: trata-se de uma escrita psico-emocional - como fragmentos de uma auto-biografia. Poderíamos dizer que neste poemário - nos passos do “politically incorrect” - perpassa a questão da hybris, desmedida do ser, da verdade da poesia como embriaguez e transgressão. Outo exemplo notável de uma poética da iconoclastia e da irreverência ou “pour cause” da “reverie” política ( tipo marxista pós-moderno - emancipalista).
Texto lido por Alexandre Teixeira Mendes no lançamento do livro “Café Paraíso” de A. Pedro Ribeiro no café-bar "Olimpo", no Porto, no dia 21 de Dezembro de 2011 e publicado no blogue de A. Pedro Ribeiro no dia 23 de Dezembro de 2011.
Ao Ribeiro
por Ângela Berlinde
12 Dezembro 2011
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Nunca serei fotógrafa o suficiente
para revelar a loucura e devaneio do poeta maldito
ou fazer o mais claro enquadramento das longas tardes
onde o poeta tudo roubou ao futuro do mundo.
Nunca serei gente suficiente
para o retratar.
Mas sei que há fotografias
que se não escrevem,
sendo só o tempo o seu dono
e a infinita passagem
a única e a mais justa forma
de os expressar.
Ribeiro fica nos cafés e na luz espelhada da Brasileira
na cor tão difícil que a liberdade mistura com os dias do mundo.
Há no seu coração um planeta a atravessar-lhe o coração,
como se o Poeta e o mundo pudessem ser uma narrativa
para partir de vez,
para o mais justo coração da humanidade.
Os livros de Pedro Ribeiro são o seu retrato mais grandioso,
como é o retrato de uma geração, de alguém nascido no mítico maio de 68.
Acreditemos em numerologia e aponte-se o dia de hoje, de regresso à Brasileira, como o dia em
que se lança o seu 10 º livro.
Guardaremos aí a estranheza e a feliz coincidência de hoje se celebrar o nascimento de Jim
Morrison, uma íntima inspiração do poeta aqui retratado, no desconforto das suas inquietações.
António Pedro Ribeiro não escreve apenas os livros, também os vive, chora, declama e, posso dizer
fotografa esse mundo.
Quem já não chorou com livros? Mas quem ainda não se espantou com a experiência de ter visto o
Ribeiro a declamar a sua poesia.
Quem seria Ribeiro se não fora a coragem de se ser também um dizeur, um artista performer?
Ribeiro é dos livros, mas também da voz e do grito, da música que se transforma em imagens. E só
por aí, Ribeiro já é do mundo, esse que acredita na humanidade.
Diante dos textos do Ribeiro uma insistente pergunta se impõe: como ler uma obra em que a
novidade se instaura no próprio código, na escrita em si? Escrita performática, inquietante que
clama por um novo leitor, que precisa se desprender dos moldes tradicionais de leitura e tornar-se
participante do ato de criação.
Nessa nova perspectiva de leitura, o texto não pode apenas ser visto, necessita de ser contemplado,
ouvido, tateado, percebido sinestesicamente, o que nos reporta à insistência com que o ler aparece
nos livros do Ribeiro.
O texto é directo e não se deixa interromper, não se fixa em nada, extrapola as convenções e,
diferentemente do que se verifica na obra, “não tem mancha de ruído”, ou seja, não “se fecha sobre
o significado” (Barthes, 1988: 73).
Nos livros, é sempre muito duvidoso o que se dá e o que se recebe, mas também não importa, o que
importa é que a estrada é uma caligrafia e o pensamento do Ribeiro é um planeta, uma rota, um
mapa, uma mão, uma voz, uma revolução!
Qualquer dia entenderemos o que é ter vindo ao mundo para inscrever coisas na parte ainda vaga do
universo em que o poeta almejou uma revolução.
O poeta pára nos cafés à espera de mais mundo.
A Terra do Ribeiro são os cafés que o protegem das intempéries e dos verões escaldantes. Ter uma
terra é isso: é ter um lugar de plantio e de colheita do que se não esquece, tudo mais, por mais belo
que possa ser, é uma passagem, é um desaparecimento.
Na terra do Ribeiro pode-se medir o mundo.
É nos cafés onde emerge o desejo e o espanto, lembrando as impossíveis brisas e todas as baladas.
Na poesia do Ribeiro o mundo a escorre-lhe dos olhos.
Nesta terra é um poeta e pouco mais, com um caderno pronto e urgente numa mão
e na outra um coração.
Ângela, a Berlinde
Texto lido por Ângela Berlinde no lançamento do livro “Café Paraíso” de A. Pedro Ribeiro no café "A Brasileira", em Braga, no dia 08 de Dezembro de 2011 e publicado no blogue de A. Pedro Ribeiro no dia 12 de Dezembro de 2011.
à mesa do homem só. estórias., A. Pedro Ribeiro
por Cláudia Sousa Dias
20 Fevereiro 2009
Paixão, delírio, desvario e perda. São os principais ingredientes deste pequeno grande livro de poesia de A. Pedro Ribeiro que, nesta fase, dava os primeiros passos nas lides da escrita poética. Os textos datam da segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. É notório o talento que escapa por entre as frases de uma escrita errante. Uma escrita essencialmente emotiva, elaborada a partir do cenário do quotidiano dos cafés das cidades do Porto e de Braga.
Uma das facetas mais angustiantes da obra por se tratar de uma temática recorrente, em diversos trabalhos de A. Pedro Ribeiro, é o da necessidade da fuga, de evasão e perseguição da miragem de um paraíso perdido, através da procura de refúgio no álcool, o alívio momentâneo no sexo. No primeiro caso, as alucinações despoletadas pela bebida aproximam-no da poesia provocadora de Morrison, enquanto que, no segundo, colocam-no muito próximo do panteão dos poetas do erotismo norte-americano como é o caso de Miller ou Bukovski.
As provocações sucedem-se em poemas como
“Ressaca”
das noites ébrias
liberto pássaros
absorvo conversas
Tudo parece
absurdo convencional
diante do meu fogo
diante da embriaguez
permanente.
desfilaremos entre os anjos
sobre o tapete celestial…”
pétalas murchas
É notório o sentimento de insatisfação constante, fruto do espartilho do tédio, da monotonia, do desespero impresso pela patine da rotina dos dias sempre iguais que impelem a procura de mundos diferentes, onde a solução mais imediata é aquela que parece ser o portal de saída, de fuga, o álcool - abre a cortina para o paraíso construído na imaginação a partir da alteridade da consciência e do desequilíbrio sináptico que transparece no apelo a Dionysos em “Ébrio 29”.
“…ao raiar da aurora
avistaremos a terra prometidadesfilaremos entre os anjos
sobre o tapete celestial…”
Do mesmo impulso de fuga à deprimente e feia realidade do quotidiano, nasce o sonho da Beleza e do Prazer, onde se apela ao excesso, trazido aparentemente pelo arquétipo representado deus ou pela figura alegórica da Embriaguez, embora, na realidade, o desejo mais primário, mais fundamental é, precisamente, o Desejo, trazido pela mão de Aphrodite, arquétipo incarnado pela Musa, a quem é dedicado o livro…
“Valete de Espadas”
cálices desleixados
(…)
o sangue não corre
a alma não morre
entediada
tantas horas
longas demoras
no meu quarto
a espera
ansiosa
a vida lá fora
as conversas
…tu…
…já não vens…
…hoje…
(…) Amor sobre um penedo de saudade
Prosseguem a angústia e a asfixia, que agarram a alma, numa espiral de auto-destruição como um pântano de areias movediças em
“Távola”
rebento suicida
outras eras
idades
A catarse
o ciúme
ao rubro
o crime
o filme
estórias ao espelho
à mesa a tua imagem
do homem só acesa.
Regresso
Um poema com duas opções de leitura, a multiplicar as interpretações e a aumentar exponencialmente a riqueza polissémica do texto que dá o título ao livro.
Em vários textos de à mesa do homem só. estórias a linguagem utilizada, aparentemente desconexa, é a projecção de caóticos sonhos povoados de erotismo, que reflectem uma poética tipicamente onírica, marcada por uma profusão de imagens que se sobrepõem e reproduzindo um caos interior, caracterizado por um vórtice de contradições à vista desarmada.
Poemas como "Anjo em Chamas", dedicado a Jim Morrison, ou “Cristo Ébrio” deliciam pela absoluta subversão face ao convencional, à norma, às regras, a toda e qualquer proibição ou dogma, características que fazem do poeta A. Pedro Ribeiro um verdadeiro filho de Maio de ’68 . São dois poemas povoados de um erotismo imbuído no sagrado, a exaltar o hyerogamos, ou acasalamento sagrado, a lembrar antigos rituais Gregos ou Babilónios.
“Cristo Ébrio”
serpentes masturbam-se na areia
estradas aquáticas
golpes de espuma celebram
o orgasmo de Neptuno.
Procuro o beijo
o anel sagrado
sou serpente ébria (…)
serpente ébria
danço canto
enfeitiço…
Este poema e o seguinte sugerem um ritual dionisíaco, marcado pelo ritmo caótico, desenfreado de um voraz bailado de Ménades, como se pode ver no poema
“Um poeta em fogo”
um cenário onírico
adornado
de cores perversas
(…)
Vulcões vomitam cometas
flores desabrocham
em arco-íris embriagadas.
Cascatas inflamadas
trepam a catedral.
Cânticos dionisícos
em redor da fogueira
corpos enlaçado
sem delírio carnal.
(…)
Toma-me a alma
Em toda a obra se assiste ao triunfo da Loucura sobre a Razão que está especialmente manifesto em “Representação”.
Mas em “Devaneios” começam a notar-se alguns ecos de Baudelaire e da sua obra As Flores do Mal
“Devaneios”
Conduz-me ao fim da noite
(…)
Encharca de whisky o meu cadáver vivo”
(…)
Vem pintor surrealista
acende na tela
a sombra imensa do martírio
conduz-me a noite sem fim”
Poema dedicado ao meu amigo António Pedro Ribeiro.
De onde te avistei logo senti Deuses de canto e de luta,
homens nus no meio de um palco,
assassinos,
E porque tens esse dom de sangue e de palavra,
de livre pensamento e de catarse,
de ofegante sentimento e de êxtase
pedra tua universal e pura.
Há em nós palavras não ditas, ideias perdidas ao longe,
E porque tens a vingança temente na língua pronta e audaz,
Como se fosses ceifar uma colheita urbana de gente, e morresses para a colher toda.
Cessando logo de seguida a empreitada, farto.
E para que um teu imperativo não seja ainda e só Kantiano nem Kafkiano,
nem Guevarista nem louco,
nem Pessoano nem Camiliano nem Queirosiano...
Nem fiel a nenhuma pátria, nem dono de nenhum império,
Nem somente uno, nem teu,
Nem simplesmente tua posse ou tu seu feitor,
Pelo Natal me lembrei de dizer,
que senti no teu navio o canto de Deuses em luta.
O último dos poemas de à mesa do homem só..., com o qual o autor presta homenagem aos sem-abrigo, exprime a total e completa insubmissão à norma e a necessidade de afirmação e de ser aceite na plenitude da diferença, que comporta a sua forma de estar no mundo, com todos os desvios:
“Queimam as horas mal-dormidas sobre um banco de jardim.
No cérebro estalam vulcões, montanhas. A viagem recomeça, rumo ao cume.
Dentro do sonho existem lugares verdes (…)
Quiseram prender-me. Atirar-me para o hospício.
Mas eu não estava lúcido. E os inquisidores fugiram de mim.”
Uma escrita onírica sim, porque pictórica, onde as imagens se sucedem, se fundem formando o caos aparente, onde se concentra o vórtice de emoções e sensações impossíveis, incomportáveis na morna quietude de quotidiano…
À mesa do café está o último reduto que abriga alguém que encarna a rebeldia de quem prega no deserto, no meio de víboras e escorpiões.
Um livro no qual, segundo o Autor,
“tudo acaba, tudo começa à mesa do homem só que escreve, descreve, constrói cenários, delineia paisagens. O resto são estímulos, sinais exteriores, perspectivas de contacto, imagens.”
Clamamos, portanto, por uma reedição.
Urgente.
Vinte e dois de Dezembro de dois mil e oito.
Alguns minutos antes ou depois de um Natal qualquer!
Alguns minutos antes ou depois de um Natal qualquer!
por Dino Almeida
escrito a 22 Dezembro de 2007 e publicado a 24 Dezembro 2007
De onde te avistei logo senti Deuses de canto e de luta,
homens nus no meio de um palco,
assassinos,
E porque tens esse dom de sangue e de palavra,
de livre pensamento e de catarse,
de ofegante sentimento e de êxtase
pedra tua universal e pura.
Há em nós palavras não ditas, ideias perdidas ao longe,
E porque tens a vingança temente na língua pronta e audaz,
Como se fosses ceifar uma colheita urbana de gente, e morresses para a colher toda.
Cessando logo de seguida a empreitada, farto.
E para que um teu imperativo não seja ainda e só Kantiano nem Kafkiano,
nem Guevarista nem louco,
nem Pessoano nem Camiliano nem Queirosiano...
Nem fiel a nenhuma pátria, nem dono de nenhum império,
Nem somente uno, nem teu,
Nem simplesmente tua posse ou tu seu feitor,
Pelo Natal me lembrei de dizer,
que senti no teu navio o canto de Deuses em luta.